Um poço, um balde, uma mulher
Um poço, um balde, uma mulher
Foto do autor Dom José Francisco Rezende Dom José Francisco Rezende
Por: Dom José Francisco Rezende Data da Publicação: 08 de Novembro de 2023FacebookTwitterInstagram

Ela era uma mulher, numa época dominada por homens.

E era samaritana, num cruzamento do mapa dominado por judeus.

Não bastasse, era adúltera, quando leis severas puniam esse delito até com a morte.

Uma anônima. E, até onde a vista alcança, pobre.

Tudo isso desqualificava qualquer possível reconhecimento social. Mas ela entrou no cerne do Evangelho com posteridade garantida: entrou no cerne do mistério.

No Evangelho de João, Jesus não chamou ninguém: nem os noivos de Caná, nem o filho curado, nem o paralisado, nenhum dos que ele alimentou com os pães e os peixes, nem o cego nem Lázaro nem Marta nem Maria. Ninguém!

Mas cada um se sentiu chamado e respondeu, correndo os riscos que ainda nem nome tinham. Somente a dois, ele disse: Segue-me. A Filipe, no início, e a Pedro, no final.

E essa extraordinária reserva não foi seguida no diálogo que Jesus manteve com aquela desconhecida. Que diálogo foi aquele! Que sutileza foi aquela! Nunca mais mantidos com ninguém!

Entre os destroços da pós-modernidade, a palavra sutileza precisa ser reencontrada, ainda que na aridez do dicionário. Na samaritana, tudo é sutileza: ela é um poema em prosa, uma harpa eólica que produz música à passagem do vento.

O Evangelho precisou da capacidade de uma alma feminina para encontrar água, e precisou falar de água para que ninguém perdesse o sentido do básico. A água, o básico, as noites estreladas, os amanheceres...

Um amanhecer continuado requer que janelas sejam abertas para que o mundo seja descoberto. Nossa biografia é escrita pelas janelas que abrimos e pelas escolhas que fizemos.

Quando a samaritana fez as escolhas que fez, ela mostrou que sua alma não era seca como as terras da Samaria. E quando viu que não havia nem balde nem poço, ela mesma se fez balde e se fez água.

 

Relacionadas