Assinante
Nelson,
Quando terminei de sorver as 551 páginas de sua autobiografia “De cu pra lua: Dramas, comédias e mistérios de um rapaz de sorte”, uma catapulta com um rebolado meio psicodélico me arremessou lá pra casa do cacete dos anos 1980.
Nelson, pousei numa das noites mais especiais de meus tempos quando você, Ângela Rô Rô e eu subimos ao palco do Circo Voador na Lapa e recebemos uma placa de prata em homenagem ao que fazíamos, ao que fazemos, ao que faremos, forever and ever, pela Cultura.
Lembro bem. Diante de nós, milhares de pessoas ensandecidas (muitas agarradas as ferragens no alto do Circo), olhando pra gente, gritando, berrando, ululando frases soltas.
Nelson (não o chamo de Nelsinho por absoluta falta de intimidade), ali naquele momento, nadando naquele caldeirão, senti o manto da mesma bruma que sobrevoou um palco em meus tempos de colégio quando ganhei um prêmio de melhor poesia.
Eu me senti relevante porque estava a seu lado, estava ao lado da Rô Rô, sob o alarido atiçado da multidão, sendo reconhecido no Circo Voador.
Essa sensação de relativa relevância durou até a manhã seguinte, quando, de novo, comecei do zero nos portais do degredo. As pequenas vitórias ao longo do dia vão trazendo o Sol de volta.
A sua autobiografia é do cacete porque sempre achei você um cara do cacete, que me arrancava cedo da praia só para assistir “Sábado Som” as 3 da tarde na TV Globo, super programa que você inventou.
Nos anos 1970 era difícil ver os nossos ídolos do rock em movimento. Até fotos eram raras.
Mesmo começando a trabalhar muito novo, “de menor”, na roqueiríssima Radio Federal em 1972, eu só vi pela primeira vez muitos de meus ídolos se mexendo em seu “Sábado Som”.
Eu e uma gigantesca corriola de roqueiros, que compramos LPs do selo “Sábado Som” que você criou.
Li a sua história na velocidade dos solos de Hendrix e lamentei quando terminei. Biografias ricas assim mostram um entorno precioso.
E o entorno da sua vida envolve pessoas e situações inestimáveis; história (como diz o título do livro) pontuada pela sorte, a arte de cair pra cima que é, sim, um dom divino.
Como também é dom dos deuses construir amizades com pessoas tão especiais que você construiu e constrói.
Antes da metade do livro, creio, muitos leitores devem perguntar “quem não gostaria de ser amigo desse cara?”.
Mais: quando terminei o livro peguei o celular e liguei para uns amigos que estão distantes.
Restabeleci elos, marquei encontros, papos, almoços porque, quer saber, Nelson Motta? Sozinho não dá.
Você se colocou na terceira pessoa, fala do Nelsinho, como muita gente (ou todo o sistema solar?) te chama.
E a saga do Nelsinho é impressionante pela qualidade e quantidade de ideias que se tornaram projetos, que se tornaram fatos, que se tornaram sucessos e depois mais ideias que se tornaram...como ondas no mar, incansáveis, belas, “gigantes de energia” como diria Jim Morrison.
O seu afeto abissal com os seus pais, Dona Xixa e Doutor Nelsão, em alguns momentos me levou a vastas emoções medidas pelos poços artesianos que a metáfora nos faz criar na borda de nossa alma.
Uma relação que me chapou de emoção porque também tenho o privilégio de vivenciar plenamente o fluxo de amor entre mim e meus pais, ontem, hoje, amanhã, depois de amanhã, depois de tudo.
Se há algo eterno em mim, Nelson, é este amor com gingado de cláusula pétrea, como diria o Doutor Nelsão.
Escrevo este bilhete aberto para te agradecer, Nelson Motta. Te agradecer por você ter nascido e, muito novo, ter exercido o jornalismo limpo, bem feito, bem apurado, que rendeu muito sucesso porque o povão gosta das coisas feitas com respeito.
Daí o meu desprezo agudo pelo jornalismo sangue pisado, mundo cão que, felizmente, começa a falir em todo mundo porque, nos tempos modernos, de grande reverberação midiática (epa!, peguei pesado), as corporações só botam dinheiro em mídia limpa.
Hoje, associar a imagem a qualidade virou uma questão imperativa. Ninguém quer se associar a lixo. Ou melhor, poucos querem se associar a lixo. Há quem goste; ratos e urubus, por exemplo.
Também sou grato por sua monumental produção cultural; discos, shows, peças, festivais, filmes, que estimulam milhões de novatos a seguirem o caminho da ética, da elegância, da lisura.
É o que você nos mostra desde sempre, seja em suas colunas em jornais, seja no cinema, literatura, shows, na linda vida privada que constituiu, com filhas, netos, bisnetos.
Valeu, Nelson Motta! Que vida, que livro! Que sorte a minha ter lido de ponta a ponta.