Que alívio, Evandro Mesquita!
Que alívio, Evandro Mesquita!
Foto do autor Luiz Antonio Mello Luiz Antonio Mello
Por: Luiz Antonio Mello Data da Publicação: 12 de Novembro de 2023FacebookTwitterInstagram
Foto: Reprodução

Tenho a impressão de que foi no ano passado que escrevi aqui neste diedro sobre o mal estar que senti quando andei por Icaraí, bairro onde vivo há décadas, em plena tarde e não encontrei nenhum conhecido. 

Nenhum.

Comecei a pensar nas razões, que voavam como cafifas (pipas) no meu firmamento particular. 

Será que me tornei recluso sem perceber? Será que todo mundo foi embora? Cadê Fulano? Cadê Beltrano? Cadê Fulana? Cadê Beltrana? 

Fiquei à beira de um verso de Antonio Maria: “Ninguém me ama, ninguém me quer/ Ninguém me chama de meu amor/ A vida passa, e eu sem ninguém/ E quem me abraça não me quer bem”.

Rsrs…só rindo.

Foi quando aqui em A TRIBUNA, numa entrevista ao repórter João Eduardo Dutra, Evandro Mesquita, da Blitz, disparou:

“Eu ia num oculista lá na Figueiredo Magalhães, em Copacabana, e voltava andando até o Leblon, pela praia e entrava no Arpoador e tentava encontrar identificações da cidade onde eu cresci, passei minha adolescência, mas não encontrava ninguém, nenhuma cara conhecida dos amigos das antigas. 

“As esquinas também mudaram. Então eu fiz uma letra sobre não estar reconhecendo a cidade onde eu cresci e mandei para o Frejat. Ele também se identificou e a gente fez essa música sobre a mudança que aconteceu com todo mundo, mas com as cidades também. Até um trecho da música diz “não reconheço mais minhas pegadas”. É sobre se se achar estranho no lugar onde você viveu seus melhores momentos da sua vida.”

Que Alívio, Evandro! A sua fala me veio como absolvição. Se bem que, no final dos anos 1970, a banda 14 Bis já chamava atenção:

“E os meus amigos dispersos pelo mundo/ A gente não se encontra mais pra cantar/ Aquelas canções/ Que disparavam nosso coração. (...) Existe algum de nós/ Que não conhece a dor/ De se sentir sozinho/ Perdido em Abbey Road.”

A ciência determinou, há séculos, que a solidão é da condição humana. 

Em outras palavras, significa que o sujeito pode no auge de um fevereiro dos anos 1970, baile de carnaval no Monte Líbano, ou no Central, ou no Canto do Rio com mulher, filhas, filhos, netos e, pou!, pintar o vácuo, o vazio, o amargo sentimento de solidão.

A solidão pessoal, que pega todo mundo, é diferente da solidão urbana. 

Essa história de andar pelas ruas sem cruzar com ninguém, “como, vai?”, “ e aí, meu chapa!”, “minha linda, há quanto tempo”, é o fim da picada porque é um atestado com letras garrafais que afirma, sem cerimônia: A SUA CIDADE NÃO EXISTE MAIS.

Vou perguntar ao Evandro se A SUA CIDADE NÃO EXISTE MAIS equivale A SUA VIDA NÃO EXISTE MAIS.

Por que? 

Porque até segunda desordem as cidades são as pessoas. 

As cidades se tornam agradáveis, palatáveis, graças ao fluxo de afeto gerado pelas conversas, pelas trocas de confidências (e inconfidências), até por encontros furtivos e clandestinos de casais também clandestinos e furtivos, embolados em lençóis banhados de segredos e troca de declarações de amor ao som de Roberto Carlos, Adamo, 10 cc tocando baixinho nos motéis, criados mudos em extinção, fiéis depositários de nossos sonhos, memórias, fantasias.

O Rio do Evandro, a BH do 14 Bis e a nossa Niterói foram dizimadas pela especulação imobiliária a partir dos anos 1970, com a cumplicidade dos governantes. 

Com a construção em massa de prédios gigantescos, recebendo milhares de famílias de outras cidades, estados e países, os núcleos afetivos básicos foram esmagados. 

Foi um pra cada lado.

Quando o Evandro Mesquita diz que “na cidade onde eu cresci, passei minha adolescência, mas não encontrava ninguém, nenhuma cara conhecida dos amigos das antigas”, é porque aquela cidade foi devidamente pulverizada. 

Muita gente acabou fugindo para outros lugares que mantém o mínimo de humanidade ou simplesmente sumiu no meio da multidão repentina de “estrangeiros” que chegaram, atraídos pelo massacre publicitário que vende 20 metros quadrados como mansões.

Desagregar a sociedade talvez seja o segundo grande mal da especulação imobiliária. 

O primeiro é destruir a saúde ambiental. Em Icaraí em muitas ruas o sol não consegue entrar. 

Paredões de prédios de um lado e do outro. 

A brisa do mar também não chega, logo, fica mais quente. 

A desordem do trânsito caótico despeja CO2 o dia inteiro nas vias respiratórias dos habitantes. 

Esmigalhados nas calçadas estreitas, 90% dos pedestres são de outros lugares. 

Aí vem a pergunta, como encontrar algum conhecido no meio dessa Babel? 

Por isso, nativos não encontram nativos e o abismo da solidão urbana nos faz assoviar “Lady Jane”, do grupo Barca do Sol, lá dos anos 70:

Lady Jane/ Respiro o cheiro dos esgotos no chão/ Sob essas catedrais de Babel/ Ah, Lady Jane/ Eu sinto o gosto dos esgotos no chão/ Sob essas catedrais/ Sob essa escuridão/ Os edifícios tem de cair.

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