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Na minha adolescência o Brasil produzia os “monstros” com motor V8, rápidos, desafiadores, irresponsáveis. Eu sonhava com o americano Mustang (Ford) e também o com o seu arquirrival Camaro (Chevrolet). No Brasil meu delírio maior era ter um Dodge Charter R/T, o que acabou acontecendo décadas depois.
No início deste século 21, vinha de moto por uma avenida e na frente de uma agência ele me chamou atenção. Era um Dodge Charger R/T bege com capota marrom (semelhante ao da foto) com uma inscrição no parabrisa: “Carro de colecionador”.
Detesto marrom, cor de caixão e cocô, mas aquilo ali era uma exceção rara. Dei a volta no quarteirão, parei, desci da moto e fui ver o Charger. Inteirinho, ano 1978, interior bege e marrom. Foi paixão explosiva e imediata, daquelas que nos tornam precipitados e levemente imbecis. Por isso, me fiz de racional e disse ao vendedor que voltaria no dia seguinte.
De manhã, estava lá. Fui com a minha namorada porque mantenho o saudável hábito de sempre pedir a opinião da mulher em relação a tudo; mulher tem a mais aguçada intuição entre todos os mamíferos.
No dia seguinte, pou! Levei o Dodge, da agência direto para uma oficina de canos silenciosos. Pus dois escapamentos esportivos, um em cada saída de descarga e saí de lá parecendo o cometa Halley, com o corpo todo arrepiado com o rosnado do motor, lembrando de Steve McQueen em “Bullitt”. O vruuuuuuum daquele motor com o escapamento esportivo era maravilhoso, mas tinha um problema: chamava a atenção. E eu não gosto de chamar a atenção.
No dia seguinte, banho de óleo na garagem. Levei num mecânico de motor V8 que me indicaram, ele pôs o Charger no elevador, olhou e deu o veredicto: estouraram seis buchas. Perguntei “buchas”? Ele me levou até debaixo do carro e eram pequenos artefatos de borracha tampando componentes na parte debaixo do motor.
Entrei na favela numa boa, bem devagar, muito devagar, perguntando onde era o “Jorge Dodge" e as pessoas informavam. Quinze minutos depois, cheguei. Escrito a mão na quase fachada estava lá “Jorge Dodge bar, prato feito, peças de carros e fiado só no vizinho” (a pontuação é minha).
Me apresentei, ele muito gente boa elogiou “que caranga, hein meu chapa”. Fez uma promoção boa, 26 buchas, hoje cada uma custaria 5 reais, ele fez por 3. Levei. Entramos no carro e fiz um verdadeiro rali para sair do lugar. Queria entregar ao mecânico e fazer logo o serviço porque levava latas de óleo na mala do carro. Motor vazando, tinha que completar o óleo toda hora.
De fato, o carro parecia uma caravela andando pelas ruas e teve a delicadeza de ferver o motor no Túnel Santa Bárbara. Barulho ensurdecedor dos carros passando, um outro motorista chamou o reboque, QUE deixou naquele recuo na boca do túnel em Laranjeiras e eu fiquei de voltar segunda-feira para buscar. “Tem que ser hoje, não pode dormir carro aqui.”, disse o funcionário.
Segunda-feira fui lá. Empurraram o carro até a porta da oficina. “Estourou uma mangueira do radiador”, disse o dono, “e pelo visto o burrinho de freio também”. Pedi para trocar a mangueira (ufa!, ele tinha uma lá) e quando ficou pronto levei o carro para a garagem e abandonei. Desilusão, decepção.
Dois meses depois anunciei, pedindo um pouco mais do que paguei por ele para compensar as despesas. Um cara de São Paulo ligou e fechamos o negócio, sem choro. Dois dias depois, conforme o combinado, ele apareceu num Alfa Romeo 156 seguido de um caminhão reboque. Comentei “coisa linda o seu carro” e ele respondeu “mas é uma bosta”, e riu.
Ele era colecionador e perguntou logo “quantas buchas do motor trocou?”, e riu; “ferveu muito?” riu de novo. “Vou comprar porque relíquia não pode andar muito, entende? Tem que ficar quieto na garagem, sair para ir a um encontro de colecionadores, leilão, alugar para novela, cinema, tudo perto. É um ancião, entende? Vai para São Paulo de reboque porque não aguenta, entende?”.
Quando vi o Dodge ir embora em cima do reboque senti...posso falar?...senti um enorme alívio. A noite fui comemorar.