Assinante
As paixões enviesadas, aquele vento encanado que bate na nuca, conduzem a reflexões de cama de motéis cheios de histórias e ocorrências policiais, como aqueles mofados, mas honestos, no entorno da Lapa, no Rio.
No filme “Local Hero” (1983), de Bill Forsyth, o personagem de Burt Lancaster em determinado momento pergunta a um tubarão da especulação imobiliária, enviado a uma bela bucólica cidade praiana onde um grupo pretende detonar tudo e construir um terminal de petróleo:
"Há quanto tempo você não ouve ‘Eu te amo’ ”?
O personagem de Burt Lancaster, um solitário magnata dono do bilionário grupo, fica comovido e desiste de tudo.
Procede?
Sempre achei que era coisa das novas gerações, neurose ególatra, modinha, ou, como diria o violinista francês Jean-Luc Ponty, moléculas egocêntricas.
Mas a impressão que o asfalto derretido pelo clima mostra é que todo mundo foi engolido pela Era do Caramujo.
Enroscados em si mesmos, nas ruas, carros, bicicletas, ônibus, aviões, calculo que 90% das pessoas se tornaram auto referenciais.
Usando a tela do celular como drones ou satélites ou penteadeiras dos antigos e adoráveis bordéis. Usam também o mini fone branco espetado nos ouvidos ou, apenas, usam o nada.
Procede?
Desprezo, indiferença, desconsideração, frigidez d’alma, renunciação, renunciamento, a desumanidade, digo, a humanidade anda para dentro, aproveitando que a maioria é dependente psicobioquímico do outro já que, parece, o homem, continua sendo um animal gregário como dizia o manual de funcionamento da falecida Rádio Relógio.
Os bordéis da Zona Sul, aliás nome de uma bela canção do amigo Dalto em parceria com Cláudio Rabello (principalmente a versão acústica com o lancinante violão do saudoso Pisca), eram postos de abastecimento afetivo.
Ouça:
O cara entrava derrubado, jururu como um pardal na chuva empoleirado em um fio de alta tensão, e uma mulher sentava à mesa do american bar perto da recepção.
Para ouvir.
Ela pedia um campari da vida, mas nem tocava naquele turbinado xarope vermelho, quase como o do Mustang cor de sangue, de Marcos e Paulo Sérgio Valle.
O cara falava.
Ela ouvia, de vez em quando leves carícias nos cabelos do visitante. E ouvia, ouvia, ouvia.
Eventualmente uma opinião. Rápida, suave.
No final do encontro, sem cama flácida, rouca, molas cansadas, o alívio do cara, como dos vulcões após árdua erupção. Pagava e saía mais leve.
Algumas pessoas coram quando digo, e escrevo, que os antigos bordéis deveriam ter virado patrimônios imateriais do afeto popular.
Procede?
Parece que hoje ninguém fala com ninguém.
Nos carros, o insulfilm nos vidros impede que a(s) pessoa (s) seja (m) vista (s), nas motos a blindagem é feita pelos capacetes e entre os pedestres os ombros curvos e o olhar apontado para a tela do celular sinalizam “nem vem, sai pra lá, passa!”.
Procede?
Encontrei uma pessoa semana passada que dizia ter saudade dos tempos em que os vizinhos sentavam à tardinha nas calçadas aos domingos, batendo papo, no bairro dela.
Por educação, pensei mas não disse. Mentira! Por preguiça, concordei, mas sempre achei essa cena bucólica o maior caô.
O que rolava (especulo) era muita fofoca, “viu aquela Vivian Gelatina saindo de casa de shortinho amarelo enfiado na bunda? E o maridão da outra tacando a mão na coxa da babá do filho?, pensa que engana, mas a vadia pula a cerca e pega o carro do sujeito na rua de trás”, e as conversas iam rolando, rolando, rolando, reputações desabando na lama asfáltica.
Fora isso, a narcomilícia, que hoje é o verdadeiro Estado, não gosta de nada que seja agregador. Mesmo sendo fofoca.
Procede?
Pode ser vertigem psicossomática mas tenho visto cada vez menos casais explícitos.
Estamos numa estiagem afetiva real? Será que vamos nos tornar, todos, o Teodoro de “Dona Flor”, já que o Vadinho foi decapitado pelo dissimulado talibã à brasileira?
De brincadeira, eu disse para a pessoa que encontrei que, se fosse hoje, o maestro da dor de corno, Antonio Maria, não teria composto “ninguém me ama, ninguém me quer” porque parece que não existe sequer desamor.
Procede?
Se o mundo mudou só me resta o consolo de ter vivido num planeta que podia ser chamado de Trepolândia anos atrás; tempos de amor tão explícito, escancarado e desavergonhado que dava 20 minutos de cadeia.
Homens choravam sentados em hidrantes, beirada de meio fio, sob chuva fina, por causa de paixões perdidas.
Beijos na boca no Circo Voador acabavam em maravilhosa e irresponsável embolação embaixo dos Arcos da Lapa e, em muitos casos, em casamento no dia seguinte. Eram tempos sem pavio ou estatuto. Acendeu e pou!
Procede?
P.S. - A indústria da ofensa
A pandemia do mau caratismo que assola o país, em todos os segmentos da sociedade, está sequestrando e executando a queima roupa a liberdade. Em todas as suas vertentes.
A indústria da ofensa e suas doses industriais e diárias de vitimismo agudo, falso moralismo, arrogância e oportunismo, insultam aqueles que um dia foram para as ruas defender diretas já, fim da censura, liberdade de imprensa, pluripartidarismo, etc. E bota et ceteras nisso.
A liberdade de imprensa é pura farsa. Aqui nesta coluna, escrevo apenas 20% do que sinto e penso. Os 80% que sobram, engaveto porque onde prevalece o mau caratismo informal ou institucional, a indústria da ofensa caça e cassa qualquer palavra que destoe da sua vilania fantasiada de pobre coitada. Se faz de ofendida para se dar bem, ganhar espaço, relevância, grana, votos, poder.
Comecei no jornalismo garoto, em 1971/72, escrevendo uma coluna de Cultura e Comportamento no JORNAL DE ICARAÍ, criado por Jourdan Amóra, diretor desta A TRIBUNA. Mantenho uma coluna lá no J.I.
Em seguida fui trabalhar em outros jornais, rádios, TVs, cinema, Web.
Conheci pessoalmente a ditadura e seus agentes, muitos militares, civis, fardados, de jeans, vestindo togas, jalecos.
Escrevendo também na imprensa alternativa nacional, perdi a conta de quantas vezes tive que entregar matérias para censor do governo que decidia o que podia e o que não podia ser publicado.
Caneta azul para OK, caneta vermelha para “vetado”. Esses elementos tinham em comum algumas características.
Eram semianalfabetos, imbecis, ignorantes, incultos, camisa aberta, colares reluzentes, não tinham nomes.
Chamavam-se “Senhor”. O “Senhor pode ter a gentileza de julgar esse texto que escrevi?”.
Um caso que fez história. No começo da Tropicália um locutor de rádio apresentou Gal Costa como General Costa. Não a conhecia.
A história ganhou o mundo e, dias depois, um censor de jornais estava avaliando uma matéria sobre a Gal.
O escroque teria perguntado em voz alta “afinal que p…rra de general é esse que vive aparecendo?” . Mandou caneta vermelha, vetou.
Ah sim, matavam e torturavam gente, de preferência jovens, como se fossem moscas. Adoravam noticiário policial, sangue, vísceras, porque era o mundo deles.
Hoje? Está muito complicado porque a canalhice misturou vilões e heróis. Macabro baile de máscaras que jogou os holofotes sobre o fascismo de esquerda e seus estatutos e regulamentos, que muita gente pensa que não existe.
A indústria da ofensa diz “se você falar ou escrever contra os meus interesses, mesmo sendo a mais pura verdade, eu me ofendo e te crucifico”.
Tudo isso sob o manto protetor da corrupção da grana, do poder, do voto. dos costumes. Manto que algemou a democracia se dizendo seu anjo da guarda.
Finalizando, leitora e leitor, esteja certo de que esta coluna é escrita sob a pior das censuras, dissimulada, insinuada, invisível, comparsa da nova desordem do dia, o “cancelamento”.
Torço para que não joguem esta na vala por causa da foto. Vão condená-la como sexista, imoral, tarada? Mesmo sendo cena de um clássico de cinema de 1953?
Se bem que, para eles, clássicos só o espelho e a conta bancária.
A cena. Um beijo faminto como todo bom beijo, mas, pena, o sujeito é cornofóbico: