Assinante
Entrar
Cadastre-se
Como muitos, no final de 2023 recebi mensagens de Feliz Natal e Ano Novo.
Algumas dessas mensagens chegaram a bordo daquela joça chamada whatsapp que injetou a descomunicação definitiva na humanidade.
Algumas eram mensagens prontas, frases feitas, que a joça pegou e espalhou.
Reconheço que quem me enviou tinha mesmo a intenção de desejar bons ventos, mas o aroma de silício, a grafia digitalizada, sei lá, aquilo foi meio sapo no bidê.
Felizmente a ganância e o pão-durismo estão abortando a famigerada inteligência artificial por aqui.
Quando Portugal invadiu o Brasil pela primeira vez, lá em 1.500, fora a matança de indígenas, tráfico de pau brasil, papagaios e decência, pouca coisa mudou.
Mas já na segunda invasão, a de D. João VI, a definitiva em 1808, toda a Corte portuguesa veio para cá.
À bordo das naus, princesas, barões, duquesas e também racismo, usura, agiotagem, lucro fácil, enfim, as bases da sociedade brasileira que hoje contemplamos.
O lema do capitalismo estrutural que formou a índole da economia brasileira, parida em Portugal, é clara: lucrar o máximo, investir o mínimo.
E é neste conceito que está a inteligência artificial implantada por empresas: vagabunda, barata, lucrativa.
Por ser vagabunda e barata, você liga para um número e atende uma máquina. “Olá, eu sou a Cremilda. Você quer falar comigo?”. Você diz “sim”, ela repete a pergunta. Você berra “SIM!”, ela repete até você mandar pra pqp e a ligação ser transferida para um (a) beócio (a) despreparado (a), sem educação, indolente porque, caro, é mal pago (a).
Como sou radicalmente profissional (desvio gravíssimo aqui em Pindorama) é complicado assistir impassível a esse show de molecagem.
Por isso, é melhor visitar o mundo analógico, como permitem as minhas lembranças.
Quando o carro entrou na aldeia empoeirada, bela, paradisíaca, a cabeça moída e o corpo cansado agradeceram.
De pés juntos.
Era verão, provavelmente um dos melhores de minha vida. Pelo menos até o verão seguinte.
O acaso me fez encontrar três amigos, que foram promovidos a grandes amigos, numa rua qualquer naquela semana.
Eu já andava cheio dos ególatras, interesseiros, parasitas que só investem em amizade de conveniência achando que somos otários.
Tudo bem, eventualmente sou otário mesmo, mas naquela semana eu estava com a faca nos dentes.
Eles me convidaram desleixada e afetuosamente, “vamos passar o resto do verão naquela aldeia praiana. Alugamos uma casa lá e um dos caras não vai poder ir.”
Comuniquei as férias (vencidas) no trabalho, passei em casa, amontei umas roupas.
Partimos em dois carros, saindo por volta das 10 da noite, uma viagem que , na época, durava duas horas mas levou umas seis pois paramos em várias biroscas para bater papo.
Eu não estava habituado com o saldo positivo de tempo.
Naquela noite sobrava tempo, mas as vezes, no meio da conversa movida a gargalhadas sentia a incômoda presença do fantasma da culpa até lembrar que estava de férias.
Na reta final, quase chegando a aldeia, achei que um caminhão vinha em sentido contrário. Parecia os tubarões voadores de Arrigo Barnabé.
Mas era Vênus, imponente no meio daquele céu azul petróleo banhado de estrelas.
Vênus ficou em nosso horizonte alguns mágicos minutos, até dobrarmos a direita numa estrada secundária que levava diretamente a aldeia.
Era mato, hoje é favela.
Chegamos e nem desfiz a mala. Simples. Duas calças jeans, bermudas, camisetas, sandália, tênis, sunga, escova de dente, Omo, etc e lá no fundo, bem no fundo, a fita com “Bonnie”, do Supertramp, que havia gravado meses antes como uma espécie de mantra e estava perdida.
Coloquei a rede nos ganchos da varada, liguei “Bonnie” num micro system de um dos amigos, no meio daquele resto de noite de um lado e início de amanhecer do outro, com direito a brisa soprando e ruído do mar de encontro as pedras, perto dali.
Ouça “Bonnie” neste link:
Acordei com o sol na cara, quente, implacável. Eram umas 10 da manhã e quase me arrastando fui para o quarto onde liguei na tomada meu bravo ventilador, que morava no porta malas do carro.
Dormi. Dormi pra cacete.
A tarde, fomos almoçar numa birosca que servia o melhor e mais barato filé de cação da região, com arroz agulhinha e brócolis de acompanhamento.
Dali, praia, mar translúcido, areia deserta. Um dos amigos tinha levado o seu pranchão de windsurf, esporte que existiu entre os anos 80 e 2000, se não me engano.
Pusemos a prancha no mar sem ondas, eles colocaram a vela e começaram a velejar.
Não sei nem nunca soube velejar porque tenho preguiça de aprender, apesar de achar fantástico.
Os caras eram feras e no fim da tarde pararam. Na beira d’água, tirei a vela da prancha, amarrei num pedregulho (como âncora) e deitei de costas, boiando como Zorba, o Grego.
As 11 da noite retornamos para a casa, a uns 60 metros dali. Eles pediram e para minha alegria dei play na fita de “Bonnie”, que rolou mais um tempão.
No dia seguinte, sem dormir, peguei uma das motos que fora rebocadas e percorri a beira d’água por vários e incontáveis quilômetros, rumo ao norte.
Em algum lugar parei, mergulhei, deitei na areia e dormi. Acordei com o sol quase se pondo. Mergulhei de novo.
Liguei a moto e retornei.
E assim o verão “Bonnie” foi cavalgando. Tudo muito devagar. Dias depois já estávamos pretos por causa do sol, e barbudos por desleixo proposital.
Numa das noites maravilhosas e transcendentais, quando todo mundo havia saído, preferi ficar sozinho.
Deitei sobre a prancha de windsurf no gramado, liguei “Bonnie” e me atirei nas estrelas e satélites que passavam naquele impressionante firmamento que misturava azul petróleo com prata.
“Deus existe”, pensei várias vezes.
Pensei e prometi a mim mesmo mudar algumas coisas na vida.
Um simples acordo com aquelas noites abençoadas que, de cara, me deram de presente três amigos extraordinários.
Passamos todo o final do verão lá naquela aldeia, como primatas.
Retornamos muito amigos. Um deles seguiu a pé para a Cordilheira dos Andes e o outro pegou um voo para o México, onde estava estudando os peiotes de Carlos Castaneda.
Eu e o terceiro amigo ficamos por aqui mesmo e toda vez que nos encontramos falamos de “Bonnie”.
Como não?