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Discreto, técnico e eficiente. Estes são os adjetivos que pessoas que viveram em Niterói entre 15 de março de 1975 e 31 de janeiro de 1977 usam em referência a Ronaldo Arthur Cruz Fabrício, ex-prefeito da cidade. No auge de seus 88 anos, o engenheiro nuclear recebeu A TRIBUNA em seu apartamento na Lagoa, na Zona Sul do Rio de Janeiro, onde desfruta de sua aposentadoria, para relembrar os 48 anos da fusão do estado da Guanabara com o Rio de Janeiro.
"A fusão deu certo", afirma categoricamente Fabrício. Primeiro prefeito de Niterói após a perda da condição de capital fluminense, Ronaldo Fabrício contou como surgiu o inesperado convite, partido do governador e almirante, Floriano Peixoto Faria Lima, que havia sido nomeado pelo então presidente da república, Ernesto Geisel. Segundo Fabrício, quem o indiciou ao governador foi o então secretário de Energia do Estado, Heleno Nunes.
"O secretário de Energia, Heleno Nunes, era muito amigo do Faria Lima. O governador me chamou, agradeci, mas disse a ele que não era político. Não sabia nem onde ficava a Câmara dos Vereadores. Se me convidasse para ser diretor da empresa de energia... a minha vida toda foi na energia. Eu não conhecia nenhum vereador. Foi quando o Faria Lima me disse que não queria ser governador. Ele fazia como eu fazia, as coisas corretas", disse.
Ainda que tenha relutado, Fabrício topou o inédito (e único) desafio em sua carreira. Como não era político, sabia que teria dificuldades de interlocução. A solução foi construir uma boa relação com os vereadores.
"Consegui uma ligação muito boa com os vereadores. No início, eles me estranhavam. Um engenheiro que não era político. Combinei com eles o seguinte: o que eles pudessem me ajudar a fazer, eu iria com eles na região deles para inaugurar. Com isso, consegui uma ligação ótima. Fiz várias escolas. Lembro de uma no Morro do Estado, onde as crianças estavam abandonadas."
Um dos "causos" relembrados pelo ex-prefeito envolve o presidente da Câmara Municipal naquela época, vereador João Batista. Fabrício contou que, mesmo tendo de agradar vereadores, buscava fazê-lo através de obras que fossem de interesse das comunidades niteroienses.
"O presidente da Câmara de vez em quando me pedia algumas coisas. Fiz uma escola, dei o nome da mãe dele. Ele ficou felicíssimo. Eu procurava fazer coisas que interessassem às comunidades. Tinha um relacionamento ótimo com eles. Não era, nem sou político. Todas as leis que propus, a Câmara aprovou sem problemas. Eu explicava para eles as necessidades", recordou.
Orçamento
O primeiro desafio foi equilibrar o orçamento. Ronaldo Fabrício, em seu governo, criou cinco novas secretarias: Administração; Educação e Cultura; Obras e Urbanismo; Saúde e Assistência; e Fazenda. Esta última foi ocupada por Oscar Nazareth, ex-diretor do Departamento do Tesouro da Prefeitura do Rio. Segundo o prefeito, o status de capital, recém-perdido, não incrementava em nada a receita da cidade.
"Tive um secretário de Fazenda ótimo, que aumentou a arrecadação. Ele conseguiu duplicar cobrando tributos de quem estava atrasado ou não pagava. O status de capital não trazia nenhuma vantagem para a receita orçada. Eram Cr$ 123 milhões, em 1975, (cerca de R$ 242 milhões em valores de hoje). Meu secretário conseguiu aumentar para Cr$ 205 milhões, em 1977 (cerca de R$ 222 milhões em valores de hoje)", explicou. É importante frisar que a moeda que circulava no Brasil naquela época era o Cruzeiro.
Obs.: O valor na conversão em reais ficou maior em 1975 do que em 1977 devido à inflação do país naquela época.
Espigões
Nos anos 1970, período em que Fabrício esteve na Prefeitura, houve a "explosão" dos espigões (prédios residenciais grandes) na Zona Sul de Niterói, principalmente em Icaraí. O ex-prefeito avalia que o movimento era inevitável, mas poderia ter sido pior. Ele recordou de uma lei que enviou à Câmara Municipal, por Mensagem Executiva, obrigando a construção de prédios com garagens a fim de evitar que centenas de carros ficassem estacionados nas ruas.
"O principal era justamente fazer a cidade crescer de uma maneira ordenada. Em Icaraí, os apartamentos eram de dois quartos sem garagem. A Moreira César [atual Ator Paulo Gustavo] virou um estacionamento. Mudei a regra e passou a ser obrigatório uma vaga de estacionamento se [o apartamento] fosse pequeno e duas se fosse grande. Passaram a fazer prédios altos, com garagem para todo mundo", contou.
Avançando no tempo aos dias de hoje, Niterói convive com a preocupação de expansão dos "espigões" a áreas ainda pouco ocupadas, como a Região Oceânica. Ronaldo Fabrício afirmou ser contra a construção de grandes edifícios naquela área.
"Eu acho que não cabem mais edifícios grandes. Foram feitas muitas casas. Quem se mudava para lá queria uma certa tranquilidade. Não precisa criar prédios grandes ali."
Obras viárias
Ao recordar de sua gestão, Ronaldo Fabrício se orgulhou ao falar das intervenções viárias. Ele destacou que as obras foram realizadas por meio de verbas federais, obtidas junto ao governo Geisel. Segundo o ex-prefeito, o objetivo era preparar o trânsito da cidade com vistas ao século XXI, tanto que, até hoje, a estrutura básica é a mesma.
"Fiz a João Brasil, que era uma rua estreitinha e alarguei, para ser mais um caminho para São Gonçalo. Alarguei a Marquês do Paraná e Jansen de Melo; aterrei toda a Praia de Piratininga e São Francisco. Deixei pronto e o Moreira [Franco, prefeito seguinte] só mandou pavimentar. Entreguei tudo na mão dele. Como eu tinha um background técnico, fiz o projeto do túnel Raul Veiga e dos alargamentos. Já havia várias descidas da Ponte, mas não tinha a continuidade para seguir até São Francisco e a Região Oceânica", enumerou.
Embora tenha feito diversas obras, Fabrício precisou conviver com críticas. Uma delas, por exemplo, era de que quatro faixas para o Túnel Raul Veiga seria muito. O ex-prefeito ainda retomou o exemplo da lei obrigando que os prédios tivessem garagens, em Icaraí.
"Quando se faz um túnel, depois nunca mais poderá alargar. Se faz com duas pistas, é para a vida inteira. O trânsito aumenta. Fiz logo largo para dar vazão. Eu queria fazer uma cidade moderna e sabia que o sistema viário era o principal obstáculo, porque eram ruas estreitas e sem garagem obrigatória. Os arquitetos diziam que eu inviabilizei a construção de apartamentos de dois quartos em Icaraí", justificou.
Aposta na Região Oceânica
Desde 1975, falava-se no crescimento da Região Oceânica. Ronaldo Fabrício, ciente disso, afirmou que a urbanização da orla de Piratininga foi uma de suas prioridades, logo que assumiu a Prefeitura. O ex-prefeito também afirmou ter organizado melhor a administração pública, com a criação das novas secretarias, além da desoneração da folha salarial com aposentadorias, que foram passadas ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).
"Eu sabia que aquela orla seria o futuro de Niterói. Que a cidade cresceria para lá. Eu queria justamente viabilizar a Região Oceânica. Foi uma das primeiras providências que tomei. Tinha certeza que a cidade ia crescer para aquela região. Reformei tudo, fiz cinco secretarias que não existiam. As despesas da Prefeitura caíram muito, acabei com as aposentadorias altas colocando todo mundo pelo INSS", acrescentou.
Crescimento desordenado
O ex-prefeito lamentou o crescimento desordenado da cidade, em áreas como o Morro do Estado, no Centro, e no Preventório, em Charitas. Ronaldo Fabrício acredita que, com o orçamento que possui hoje em dia, a Prefeitura teria possibilidade de construir casas populares para abrigar essas pessoas.
"É um absurdo, porque, tendo recursos como a Prefeitura tem hoje, deveria fazer casas populares. Não casas em morros, mas sim em lugares que não vão desabar quando chove. O que acontece é que a maioria das pessoas que assumem não têm essa noção de conjunto. De fazer uma cidade que não sofra com as chuvas, que tenha um bom caminho para crescer. Gostaria de ter feito novas estações de tratamento de esgoto e novos pontos de coleta de esgoto nos vários bairros. Não sei como hoje, com R$ 4 bilhões de orçamento, não fazem isso", opinou.
Túnel Charitas-Cafubá
Durante a entrevista, Ronaldo Fabrício apresentou dois documentos: o balanço dos 22 meses de sua gestão e "Diretrizes para o Desenvolvimento de Niterói", uma espécie de ancestral do plano "Niterói que Queremos", do governo atual. Entre as diretrizes, estava a construção do Túnel Charitas-Cafubá, inaugurado apenas em 2017, já no governo de Rodrigo Neves (PDT).
Ronaldo Fabrício afirmou que, diante do curto tempo de seu governo (1 ano e 10 meses), priorizou a obra do Túnel Raul Veiga, considerada mais emergencial naquele período. Ele lamentou que os governos municipais que vieram na sequência, como o de Moreira Franco (MDB), que inaugurou a obra do Raul Veiga, iniciada na gestão de Fabrício, não tenham dado sequência ao plano de diretrizes.
"Naquela época já queria fazer esse túnel, que é essencial para se chegar direto a Piratininga. O que fiz, que foi o de São Francisco a Icaraí, era fundamental porque o trânsito causava um entupimento na Avenida Estácio de Sá [atual Roberto Silveira]. Não se conseguia ir a São Francisco nem para a Região Oceânica. O projeto foi muito bem feito e o presidente Geisel até veio para inaugurar. Eu já tinha o projeto naquela época", frisou.
Diálogo com Moreira Franco e carreira política
Em seguida, Fabrício foi perguntado sobre o diálogo com Moreira Franco, seu sucessor. O ex-prefeito afirmou que não houve transição. Ronaldo Fabrício ainda deu uma leve cutucada no emedebista ao afirmar que a estrutura que Moreira herdou em Niterói foi fundamental para que, em 1986, ele fosse eleito governador do Estado do Rio de Janeiro.
"Ele não me chamou para nada e não me perguntou nada. Não teve interesse em saber o que eu projetava, nada disso. Ele era tão recuado, afastado. O Moreira era um cara muito privado. Foi prefeito e governador depois porque aproveitou as obras que eu fiz para se eleger. Sem falsa modéstia. Aquilo tudo teve um efeito enorme sobre a população de Niterói", relatou.
Após deixar a Prefeitura de Niterói, em 1977, Ronaldo Fabrício não quis seguir carreira política. Ele retornou às origens, como engenheiro nuclear. Foi presidente da estatal Eletronuclear, pela qual concluiu a construção da usina Angra II, no Sul Fluminense; e também presidiu Furnas. Até 2016, atuava como vice-presidente da Associação Brasileira para o Desenvolvimento de Atividades Nucleares (Abdan).
"Não [quis seguir carreira política]. Eu estava orientado para a área nuclear. Nunca recebi nenhum convite, nem aceitaria. Fiz o meu serviço e fui muito gratificado. Depois voltei à Eletronuclear para concluir Angra II, que eu tinha iniciado antes de ser prefeito, fui presidente de Furnas, fui vice-presidente da Abdan até me aposentar, em 2016. O engenheiro só pensa em coisas técnicas."
Energia elétrica
No último verão, Niterói sofreu com constantes "apagões" e "picos de energia", provocados principalmente pelas fortes chuvas e ventos, que causavam, por exemplo, explosões de transformadores pela cidade. Ronaldo Fabrício sugeriu que a melhor solução para a geração de energia na cidade seriam usinas eólicas, que são aquelas que utilizam o vento como fonte.
"Hoje o melhor seria a energia eólica. Niterói é uma cidade com ventos e não tem nenhum aproveitamento hidrelétrico para se fazer uma usina robusta. Não tem nenhuma queda de rio. Térmica, nem pensar por causa da poluição. A eólica é uma boa saída. Além disso, eu diria para fazer saneamento, que é fundamental, e a Região Oceânica, que tem um potencial muito grande", destacou.
'A fusão deu certo'
Perguntado se a fusão entre a Guanabara e o Rio de Janeiro deu certo, Ronaldo Fabrício é enfático ao fizer que sim. Ele deixou um recado aos atuais e futuros gestores para que saibam aproveitas os recursos dos royalties do petróleo, o que gera incremento na receita, facilitador que não havia em 1975.
"A fusão deu certo. Nosso orçamento não tinha nada de bilhões. Espero que eles saibam aproveitar esse dinheiro. Eu não tinha interesse em política, era um engenheiro que queria cumprir aquilo que coloquei no meu programa. O que eu não podia fazer, pedia ao Faria Lima para fazer, como a Estação de Tratamento de Esgotos de Icaraí", finalizou.
"Niterói teve benefícios porque ficou independente em relação ao [estado] do Rio de Janeiro. Tinha orçamento próprio, prefeito próprio e não estava mais ligada umbilicalmente ao estado. A Prefeitura tinha um monte de departamentos e nenhuma secretaria, onde eram nomeados amigos do governador ou do prefeito, que não tinham compromisso com a cidade. Com honestidade, consegui fazer um bom governo."
Ronaldo Fabrício, ex-prefeito de Niterói (1975-1977)
NOTA DA REDAÇÃO - Na versão impressa de A TRIBUNA, a entrevista com o ex-prefeito Ronaldo Fabrício foi assinada pelo repórter Saulo Andrade, quando na verdade o autor da matéria é o jornalista Vítor d'Avila. Pedimos desculpas pelo erro.